Antes da democracia
Os olhos marejados, deixavam turva a imagem, do documentário sobre Portugal antes da democracia.
Em vários momentos, a emoção tomou conta da noite.
Num passado recente, mas tão longínquo pela catadupa de acontecimentos e pelas mudanças que a democracia trouxe, penso e repenso, como foi possível ter vivido tantas daquelas situações, em que tudo faltava.
As mulheres pariam em casa, com ajuda de outras mulheres, depois de um período de gestação sem qualquer acompanhamento médico.
Para a escola, iam apenas alguns. Faziam a 2ª classe, excepcionalmente a 4ª e poucos tinham a possibilidade de prosseguir os estudos.
Todos os braços faziam falta nas famílias, que subsistiam quase exclusivamente da produção agrícola de subsistência, cultivando largas extensões de terreno, com recurso apenas a artefactos manuais. As crianças da família, desempenhavam desde tenra idade muitas destas tarefas.
As habitações, não tinham electricidade, água canalizada, esgotos.
Na mesma casa viviam duas ou três gerações e na mesma cama, podiam dormir vários irmãos ou pais e filhos, deitados uns para a cabeceira outros para os pés.
A alimentação era fraca em carne e peixe, sendo sobretudo feita à base de sopa, pão, fruta e um ou outro conduto. O vinho era desde muito cedo dado às crianças. Tudo servia para enganar o estômago. Muitas crianças, apresentavam grandes dificuldades de aprendizagem, sobretudo porque tinham carências alimentares graves.
Os rapazes, eram obrigados a interromper a vida, para cumprir serviço militar, quase sempre, para combater em África.
As mulheres, eram consideradas seres inferiores, habitualmente domésticas, para se ocuparem do lar, dos filhos, fazer trabalhos de bordado, costura ou outros, como tratar do cultivo das terras anexadas à casa.
A indústria era pouca, o que reduzia ainda mais a oferta de trabalho. Para muitos, a solução foi emigrar.
A imprensa era controlada/censurada e não se sabia o que acontecia noutros países.
A rede de transportes era mínima e os acessos a muitos lugares, apenas possível por caminhos de terra batida.
Namorar na rua e gestos de ternura, eram punidos.
E eu, que ainda passei por tudo isto, tenho de conseguir contar esse viver aos mais jovens, porque é a memória contada, que nos permite construir um futuro com história livre de opressões, onde possamos viver em democracia e em liberdade.
Fátima Camilo